quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

ANALISANDO UMA OBRA DA CULTURA SURDA

Fonte :
http://forum.ulbratorres.com.br/2010/mesa_texto/MESA%201%20B.pdf“LÉO, O PUTO SURDO”
Cláudio Henrique Nunes Mourão -cacaumourao@yahoo.com.br
Orientadora Dra. Profª Lodenir Karnopp -UFRGS/FACED -Porto Alegre/RS
O presente artigo analisa o livro “Léo, o puto2 surdo” (2006), que apresenta a tradução do original francês, publicado no ano de 1998, pelo autor francês surdo, Yves Lapalu. O autor nasceu surdo, é um talentoso desenhista e foi o primeiro surdo formado na Escola Superior de Artes Gráficas. Faleceu em março de 2001.
É um livro que mostra histórias em quadrinhos que estão relacionadas com a Cultura
Surda, contemplando os acontecimentos do menino surdo, Léo. O livro foi traduzido do
francês para a língua portuguesa, mas não há tradução para a Língua de Sinais. As ilustrações permanecem as mesmas do original francês, apresentando o menino Léo como personagem surdo. A Língua de Sinais Francesa (LSF3) é diferente da Língua Gestual Portuguesa, são idiomas diferentes. No entanto, algumas ilustrações apresentam o personagem Léo sinalizando ou utilizando o alfabeto manual – tais sinais são contemplados na tradução que aparece nos balões, que possibilitam a tradução dos sinais (da língua de sinais francesa) para a língua portuguesa. O alfabeto manual de Língua de Sinais Francesa e alguns sinais franceses são semelhantes ao alfabeto manual e aos sinais LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais), ficou mais claro o entendimentos das histórias em quadrinhos.
O livro tem 104 páginas, com histórias de humor ou piadas, que coletam fragmentos
da vida cotidiana de surdos, que estão inseridos em uma cultura surda.
Cláudio Henrique Nunes Mourão, mestrando em Educação na UFRGS, linha de Estudos Culturais em Educação, sob orientação da profa. Dra. Lodenir Karnopp. Bolsista do CNPq.
2
Puto, tradução em Portugal, aqui no Brasil, é menino ou criança.
3
Língua de Sinais não é universal como outra língua portuguesa, japonesa, inglês, etc. Portanto, LSF é uma língua própria da França e Libras é a língua própria do Brasil.
1
Os texto a seguir faz o recorte de algumas das histórias apresentadas no livro
selecionado.
1. Sozinho, sem entender outra língua...
Cena: “Almoço com a família” (Lapalu 2006, p. 10)
Comentário: Almoço em família, isto é, um encontro familiar, que pode ser no dias
das mães/pais ou uma rotina diária como o café da manhã, almoço, janta, festa familiar, etc.
As figuras mostram cinco pessoas conversado normalmente e, às vezes, com a boca cheia; enquanto isso, um surdo não entende a comunicação oral da família. De repente, Léo começou a se comunicar com o papagaio, os dois conversam na língua de sinais, enquanto a família usa a língua oral. Eles ficaram surpresos ao ver os dois conversando na língua de sinais.
Parece piada, mas não é! Isto mostra momentos recorrentes nos encontros familiares.
Geralmente, os surdos têm paciência, permanecem sem conversar durante os encontros
familiares ou fingem que entendem tudo através da comunicação oral. Em outros momentos, podem não ser pacientes, terminam logo de comer e saem dali para ver um filme legendado, ler livros ou encontrar um surdo, entre outras possibilidades. Em geral, ficam ansiosos para ir à escola de surdos, para acessar a internet e o MSN, enfim, para encontrar pessoas com quem possam compartilhar informações, pois o surdo busca informações visuais: na língua de sinais, em materiais escritos, em figuras. Não pretendo só focalizar que o surdo não entende a comunicação oral, mas o fato é que a maioria das famílias não se comunicam com o surdo através da língua de sinais. Em geral, os familiares se comunicam através da língua falada, com articulação dos sons pausadamente para que surdo entenda, com voz alta (não deviam gritar, pois ele é surdo!)... Desse modo, frequentemente os familiares perdem a paciência, pois
2
não querem perder tempo, mas aproveitar os papos e as novidades de todos, já que há muitos assuntos que são tratados em família. Conforme, Strobel (2008, p. 51), diz:
Na maioria dos casos, com famílias ouvintes, o problema encontrado para
esses sujeitos surdos é a carência de diálogo, entendimento e da falta de
noção do que é cultura surda. Cite exemplo abaixo:
Em muitas ocasiões eu não entendia o que falavam ao redor da mesa
durante as refeições ou durante as novelas na televisão e muita vez
implorava às pessoas pela pouca atenção e explicação sobre surdo.
Além dessa possibilidade, há também encontros de família com um único surdo em
que, geralmente, o convite para festas, eventos, entre outros, é feito a um (ou mais) amigo surdo ou alguém que saiba a Língua de Sinais, por exemplo, um vizinho ou um intérprete para um bate-mãos4, evitando assim que o surdo permaneça sozinho durante horas na festa, sem uma comunicação confortável.
Lembro da minha história familiar, dos momentos em que percebi paciência e
impaciência, durante a rotina de café da manhã ou almoço, pois na família Mourão, eu era oralizado e não conhecia a língua de sinais. Em vários momentos, percebia que eles ficavam sempre batendo papo, alegres, contando piadas, tratando de negócios, assuntos sérios, fofocas, etc. Eu quase não entendia nada durante a conversa, perguntava para minha mãe ou irmãos “o que vocês estão dizendo”? Eles davam respostas curtas, simples, com “uma ou quatro palavras”, por exemplo “ah! Briga namorado” ou “problema trabalho”, até respondiam “bobagem” no sentido de que o assunto não tinha importância, etc. Eu simplesmente ficava decepcionado, pois eles conversavam durante horas, assim eles me diziam com três palavras, em alguns segundos, imaginem! Tempos depois, viajei para um outro planeta, de surdos, e descobri que existe uma terra surda, que é meu mundo e que tem a minha língua natural, a língua de sinais, uma língua visual que posso “ouvir”(?) pela visão. Finalmente conheci uma garota surda, e me apaixonei pelo mundo surdo. Na época, minha família queria conhecê-la e fomos a um jantar na casa da minha irmã, com a presença de meus pais, irmãos e sobrinhos. Antes do jantar, meus pais me perguntavam como deviam se comunicar com ela, pois eles não sabem a língua de sinais e tinham medo de não conseguir o contato com ela. Eu dizia assim: “simplesmente usem a comunicação oral e falem devagar como faziam quando eu vivia com vocês”. Bom, no jantar, 4 Bate-mãos é o termo bate-papo ou conversados ou comunicar pela Língua de Sinais.
3 todos estavam ansiosos para conhecê-la e, logo que sentamos, eu e ela começamos a
conversar bastante em língua de sinais, dávamos risadas e estávamos animados... enquanto isso, minha família conversava pela língua oral. Alguns minutos depois, de repente, percebi que eles pararam de conversar e estavam calados, observando a nossa conversa na língua de sinais. Parei um momento, perguntei para todos: “o que houve”? Minha irmã disse que a filha dela estava com vergonha, mas gostaria de saber o seguinte: - Cacau, nós queríamos saber o que vocês estão conversando? Fiquei surpreso e falei assim: - Lembram aquela época em que eu vivia com vocês e eu ficava muitas horas sem participar das conversas, contando com a paciência ou a impaciência de vocês? E vocês agora não têm paciência, nem cinco minutos? Imaginem?
Eles ficaram chocados e sem outras perguntas, começaram a rir. Não sou o único exemplo, também há muitos outros exemplos de surdos que comentam experiências semelhantes, situações engraçadas, que evidenciam a necessidade de manter contato com os surdos para uma comunicação fluente, trocar idéias, manter-se atualizado, divertir-se. Há famílias que compreendem que os filhos surdos optam não permanecer em alguns encontros da família ou festas (com os ouvintes)... Entendem a opção dos filhos surdos quando preferem encontrar outro surdo, para um bate-mão no bar, na associação, na casa de amigos, inclusive durante as festividades de Natal e Ano-Novo. Essa é uma experiência semelhante entre os surdos, por compartilharem a língua de sinais e a cultura surda, por encontrar na comunidade as piadas surdas, a literatura surda, as fofocas surdas, as notícias surdas, os esportes de surdos, o lazer surdo, etc. No quadro de Léo com a família, aparece Léo e o papagaio se comunicando na língua de sinais. Parece impossível, mas existem papagaios que imitam a fala e repetem algumas palavras. Em se tratando de uma comunicação mais geral, há relatos de pessoas surdas que emitem ordens em sinais para animais de estimação, por exemplo, o dono surdo sinaliza PASSEIO para seu cachorro de estimação, que balança o rabo, feliz e corre até ele para juntos passearem na rua. Não só entende a sinalização, mas também quando alguma visita chega e toca a campainha da casa, o cachorro avisa seu dono surdo que há algo estranho ou algo em movimento, avisando o dono surdo.
4 Strobel (2008, p. 55) cita o depoimento de uma psicóloga surda sobre o processo
aprendizagem do gato dela, que se chama Rony: Pensei em uma forma de o Rony iria entender o meu comportamento de pessoa surda pois sei que dentro da cultura surda, tem inúmeros casos de animais como: cachorros, papagaios e gatos que tem comunicação visual e forte com os surdos. ...Rony quando mia para mim ele sabe que dou atenção com muitos mimos e carinhos, mas ao poucos foi percebendo que se miasse atrás de mim
ou ao lado eu não respondia....Rony foi adquirindo o comportamento como passava por trás sem miar, vai na minha frente sem miar se não estiver olhando para ele. Então ele entendeu que seu o olhasse ele miava bem alto e assim ele recebia mimos e
carinhos... (Rita Maestri) Cena: “Cinema em Casa” (Lapalu 2006, p. 25)
Comentário: Léo e seus pais assistem a TV (sem legendas). Léo pergunta à mãe o que estão dizendo na TV. A mãe responde que explicará depois. Léo não entende nada da
conversada entre os atores. Impacientemente, Léo pergunta novamente à mãe, que pede para ele esperar e permanecer em silêncio. Léo cansa e vai para o quarto dele...
Impressionante que esses quadrinhos me trouxeram lembranças da minha infância e
certamente há experiências semelhantes com outros surdos. É comum que muitos programas na TV estão sem legendas, por exemplo: algumas novelas não têm legendas, mas aqueles que assistem às novelas fazem inúmeras perguntas aos pais, ou solicitam informações a um colega, em outro dia, sobre os acontecimentos da novela. Isso também acontece com os filmes, seriados... sem legendas. Nós, surdos, temos que sempre tentar adivinhar a ação dos personagens, o que vai acontecer, até observar a expressão facial. Podemos confundir os acontecimentos, as ações, as cenas. É um desperdício de nosso esforço. Quando começou a terlegenda na televisão, como o closed caption, houve uma grande oportunidade de
5 entendimento, tornando satisfatória a recepção dos programas. Quando começou a ter legenda na novela das 21hs, as perguntas aos familiares ou colegas diminuíram! Atualmente, a situação é bem diferente: após a novela, temos assunto para conversar. Existem filmes estrangeiros com legenda, mas falta ainda legenda nos filmes nacionais, pois não podemos ir ao cinema assistir um filme brasileiro, somente filmes estrangeiros. Nós, surdos , raramente assistimos filmes brasileiros, por isso não temos acesso a uma parte da cultura brasileira, pela falta de acesso filmes aos brasileiros. Espero que em breve, seja disponibilizada legenda em português, em todos os programas.
2. Conversar sem parar...
Cena: “Gestuar à chuva” (Lapalu 2006, p. 11)
Comentário: Léo vai passear, no parque, com um tia surda que encontra uma amiga.
Mais tarde, Léo percebe que elas falam tanto... (comunicam-se em língua de sinais). Léo queria ir embora. De repente,o tempo fechou, começou chover... Léo pensou que iriam embora por causa da chuva. Mas Léo ficou surpreso em ver que as duas abriram um guardachuva, colocando-o na cabeça enquanto as mãos permaneciam livres para continuar a conversa.
Interessante o guarda-chuva moderno, especial para surdos usarem. Essa cena mostra
acontecimentos semelhantes entre os surdos, que levam horas conversando (bate-mão) sem perceber que o tempo passa rapidamente. No bar, na associação de surdo ou em outro lugar, os surdos levam horas num bate-mão, como se não existisse relógio. Se forem filhos surdos com pais ouvintes, em que os pais que não sabem se comunicar pela língua de sinais e utilizam sinais caseiros ou falam com os filhos surdos, que entendem parcialmente o que os pais dizem. Nessas situações, os surdos ficam muito tempo (até uma semana) sem contato com outros surdos e, no final de semana, quando encontram outro surdo, finalmente, eles ficam horas num bate-mão, para recuperar aquela semana inteira, sem saber das novidades,
6 das notícias que passaram. Nesses encontros, os surdos dividem o que se passou, quais foram as notícias da TV, o que apareceu nos jornais ou revistas, quais as piadas, as novidades e as informações que circularam. Há também o caso de surdos que permanecem, no final de semana, em casa com os pais e quando chega a segunda-feira, acordam cedo e saem da cama com ansiedade e alegria, para ir à escola de surdos trocar idéias sobre o final de semana que passou.
Cena: “O telefone surdo” (Lapalu 2006, p. 15)
Comentário: Quando o telefone tocou, ao mesmo tempo a luz piscou. Léo atendeu o
telefone que usa um aparelho adaptado: TDD. Léo está conversando com outro surdo no
mesmo aparelho TDD. Passaram-se mais de cinco horas, focalizados e colados no TDD...
Impressionante que em nossa cultura surda, são comuns novidades e tecnologia para
surdo. Na década de 90, no Brasil, o aparelho TDD era caro, os surdos sonhavam em comprar esse aparelho. Strobel (2008, p.76), descreve o aparelho TDD:
O TDD (Telephone Device for the Deaf) – um pouco maior que o telefone
convencional, na parte de cima tem um encaixe de fone e embaixo dele tem
um visor onde aparece escrito digitado e mais abaixo tem as teclas para
digitar -, instrumentos luminosos como a campainha em casas e escolas de
surdos, despertadores com vibradores, legendas close-caption, babá
sinalizadores, etc.
Quando surgiu o TDD, telefone para surdos se comunicarem, eles ficavam fixados,
durante muitas horas no TDD – isso antes de criação do chat.
Depoimento de uma surda sobre primeira vez que usou o TDD.
Na primeira vez, ganhei o TDD do meu pai, em 1997, comecei usar.
Usava bastante para conversar alguns surdos que tem TDD, ficava pouco
mais de uma hora, era imensa felicidade. Como após muitos anos sem
comunicação “virtual”, somente comunicava surdos na escola e locais onde
tem encontro dos surdos, era impossível conversar surdos pelo “telefone”,
então TDD era única oportunidade. Como tenho irmão que gastava horas
7
telefonando, um dia, pai foi cobrar a conta que o irmão gastava pelo
telefone. Então irmão notou que meu pai nunca tinha cobrado para pagar na
conta, me obrigou que eu deveria pagar, o meu pai respondia: Não, ela
nunca teve telefone na vida dela, agora ela merece a comunicação. Também
ela não ligava todas as horas, era limitação, ligava para quem tem TDD.
(Carolina Hessel Silveira)5
Depois surgiu chat ICQ6, mais tarde, surgiu MSN Messenger7, assim diminuiu a
compra de TDD, pois nós temos vários motivos para acompanhar as novas tecnologias.
Atualmente temos disponível no mercado celular com mensagem, email, etc., são comuns
surdos que utilizam computadores e até notebook. Então, no MSN Messenger, os surdos ficam horas sem se preocupar com a conta de telefone. Poucos anos atrás, surgiu a câmera de vídeo (Webcam), em que alguns preferem virtualmente usar a língua de sinais e outros preferem escrever na língua portuguesa (querem aprender mais vocabulário e desenvolver a escrita da língua portuguesa como segunda língua). Vários surdos até fizeram novas amizades em várias regiões ou estados, até que acabam sendo convidados para visitar essas regiões ou estados. É
possível até mesmo estabelecer contato com surdos de outros países, através do Gestuno8
(Língua de Sinais Internacional) pela virtualidade da webcam9. Uma coisa interessante, que notei ao usar a webcam, é que surdos podem se comunicar com surdos estrangeiros, porque a escrita estrangeira é difícil entender. Citado autora Strobel (2008, p. 77), diz: E as outras tecnologias que são de domínio da sociedade em geral, mas que são necessárias para o povo surdo, é o meio digital de comunicação em
tempo real à distancia, tais como torpedos de celular, chats em internet e
muitos sites das comunidades surdas. Espero que o TDD não seja excluído ou poderá ir ao museu para nossas gerações futuras saberem como era o modelo dos primeiros telefones de surdos.
5
Carolina Hessel Silveira - agradeço a ela pela participação do depoimento e contribuição da sua narrativa.
6 ICQ é um programa de comunicação instantânea pela Internet. A sigla em inglês (I Seek You), em português,
"Eu procuro você". Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/ICQ. Acesso em: 28 de maio de 2009.
7 MSN Messenger é um programa de envio de mensagens instantâneas.
8
Gestuno é uma língua de sinais internacional. O Gestuno não é língua universal, é uma linguagem auxiliar, que
não possui gramática própria (a gramática do Gestuno é a gramática das diversas línguas de sinais) e auxilia na
comunicação dos surdos em Encontros de Jovens Surdos, Congresso internacional, viagens, etc. Disponível em:
http://www.alfabetosurdo.com/ptsign/gestunoorigins.asp. Acesso em: 24 de maio de 2009.
9 Webcam - Webcam (português europeu) ou Câmera de Vídeo (português brasileiro) é uma câmera de vídeo
de baixo custo que capta imagens, transferindo-as de modo quase instantâneo para o computador. Disponível
em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Webcam. Acesso em 28 de maio de 2009.
8
Cena: “Luzes à noite” (Lapalu 2006, p. 21)
Comentário: Os pais de Léo alugaram uma casa de férias no campo. Léo convidou um
amigo surdo para acompanhá-lo. Certa noite, Léo e seu amigo foram para o quarto para
bate-mãos; a mãe entrou no quarto e disse: Está na hora de dormir! Apagou a luz, mas eles
não podiam conversar sem luz, resolveram ligar a luz do abajur. Infelizmente, a mãe voltou e
pediu para desligarem a luz que era muito tarde. Mas eles resistiram, continuaram de outro
jeito, com luz de lanternas e outros...
Certamente que faz parte de nossos encontros o desejo de permanecer por longas horas
conversando em sinais; os surdos levam horas num bate-mãos e é como se fosse um costume.
Alguns surdos chegam a se atrasar em vários encontros, por exemplo: em churrascos, houve
surdos que espetavam a carne no espeto, mas continuavam conversando... Como usar as mãos
para duas coisas ao mesmo tempo? É possível, mas ocorrem atrasos, já que em situações
como essa é preciso observar a carne no espeto e visualizar a comunicação: isso é o cotidiano!
Depoimento da mãe da filha surda:
Minha filha tem uma visita que é surda, conversando nas altas horas,
vai até quase 23hs, eu avisei já é tarde, sua amiga precisa ir embora, amanhã
você tem aula. Minha filha me respondeu: é cultura surda! Como ela é
esperta, mas tive explicar que precisa limitar.10
Claro que nós temos limites, que precisamos respeitar regras sociais. Mas, o fato é que
o encontro entre os surdos e a conversa em língua de sinais captura nossa atenção e interesse,
fazendo com que algumas outras coisas sejam colocadas em segundo plano.
Cena: “Gestuar ou conduzir, é preciso decidir” (Lapalu 2006, p. 81)
10
Depoimento do sujeito 1, que pediu anonimato. Agradeço pela sua narrativa e contribuição neste artigo.
9
Comentário: Esses quadrinhos mostram pessoas passando na faixa de pedestres e um
carro desrespeitando o semáforo que estava verde para pedestres. As pessoas voaram para
todos os lados, evitando atropelamento. Enquanto isso, o motorista do carro estava em batemãos
com a tia surda e Léo.
Os quadrinhos enfatizam o humor e as situações engraçadas. Obviamente, não é coisa
de costume para surdos, realmente não é isso!!! Os ouvintes podem imaginar que se estiverem
de carona com um surdo ao volante e se, enquanto ele dirige, pode conversar (bate-mãos) com
outros surdos... será que nessa situação, os ouvintes ficariam tranqüilamente sentados atrás ou
pediriam que o motorista surdo parasse de conversar para ficar atento somente à direção?
É comum os ouvintes não confiarem no surdo ao volante, justamente porque
continuam dirigindo e conversando em sinais. Os ouvintes perguntam: como podem ouvir
buzinas? A resposta é simples e podemos perguntar também se os ouvintes podem fechar as
janelas do carro enquanto escutam as músicas em volume alto, não ouvindo as buzinas e os
sons externos. Isto é, faltam informações para todos entenderem que os surdos podem dirigir,
desde que devidamente habilitado (regras que são para todos, surdos ou ouvintes).
Trago minha experiência o que me ocorreu no hospital:
Eu e minha namorada, Carolina Hessel, fomos viajar para interior de
carro. Eu tive problemas de falta de ar e fomos ao hospital. O hospital era
bem antigo. O médico verificou a pressão, etc. até fez muitas perguntas.
Carolina me ajudou a responder oralmente e interpretava para mim, pois eu
estava doente para responder as perguntas do médico. Na última pergunta, o
médico queria saber como viemos parar naquele hospital. Respondi que
viemos de carro. O médico ficou calado e olhando cada um de nós,
perguntou se podíamos dirigir. Nós ficamos olhando um para o outro
(segurando para não rir) e respondemos: “claro, podemos dirigir normal!”.
Cena: “Gestuar ou escalar, é preciso optar” (Lapalu 2006, p. 97)
10
Comentário: O quadrinho, em três cenas, mostra a figura de uma escalada, apenas
um homem subindo, escalando a montanha. A terceira cena mostra dois meninos surdos
conversando, sendo carregados numa corda pelo homem.
É engraçado observar essa história, pois simplesmente eles preferem se comunicar
com as mãos do que escalar. Se forem escalar, não podem se comunicar tanto, pois as mãos precisam segurar na pedra para subir. Como os surdos não podem fazer tantas coisas ao mesmo tempo em que estão se comunicando fazem combinações com antecedência, por exemplo, ao segurar objetos (mesa), primeiro combinam para onde levar uma mesa e depois levam a mesa para uma outra direção. Os ouvintes podem levar uma mesa para outro lugar ao mesmo tempo em que estão conversando. Por isso, o homem está emburrado, porque carrega dois meninos que se comunicam.
3. Intérprete não-humano...
Cena: “A porta!” (Lapalu 2006, p. 51)
Comentário: Léo se encontra com um amigo surdo em uma praça pública, o surdo
conta-lhe uma novidade. Diz ele: “quando o telefone tocou, o meu cão correu e me procurou na sala, cozinha etc., lembrou que eu estava no banheiro, correu para lá e abriu a porta que eu havia esquecido de chavear.”
11
Como eu relatei anteriormente sobre os animais estimação, a autora Strobel (2008, p.
55), diz:Lá em São Paulo, tem uma família de pai surdo, mãe surda e duas filhas
moças surdas, eles possuem um cachorro labrador que entende a
comunicação em gestos, quando a moça surda faz sinal de “passear”, o
cachorro vibra de alegre indo até a porta, e assim por adiante. Também
entende do sinal “fazer xixi”, “tomar banho”, “comer” e até mesmo os sinais
de nomes de cada membro de família.
Engraçado analisar as histórias que registram o cotidiano de muitos surdos, que
mostram parte de nossa cultura surda. Lembro-me de um outro relato, de um caso que
aconteceu com um surdo que se hospedou em um hotel. O recepcionista sabia disso, só que esqueceu de avisar a faxineira que o surdo estava no quarto. Logo que a faxineira abriu a porta e acendeu a luz, o surdo estava deitado e gritou pedindo que a faxineira se retirasse: novamente situações embaraçosas e que causam alguns sustos. Outro caso semelhante: todos os funcionários do hotel sabiam que o surdo estava no quarto. Certa manhã, desconhecendo a cultura surda, eles bateram na porta para ver se estava tudo bem e nada de resposta. Ficaram preocupados e pensaram que o surdo estivesse morto. Resolveram ligar para o presidente da associação de surdos pedindo explicações sobre o que estava acontecendo no hotel.
Simplesmente o presidente disse que não havia motivos para preocupação e que o hóspede deveria estar dormindo e não ouvia a batida na porta, pois ele era surdo. Algumas horas depois, o surdo saiu do quarto e foi até a recepção, momento em que todos os funcionários ficaram aliviados! Existe outro jeito para adaptar a casa para surdos, por exemplo, quando a campainha toca, a luz pisca; quando um bebê chora, a luz pisca; quando um telefone toca (TDD), a luz pisca. Existe até um aparelho com uma lâmpada acoplada (aparelho pequeno, próprio para levar em viagens) que pode ser colocado na porta de quartos do hotel: quando batem na porta, o aparelho capta o som e uma luz começa a piscar. Um outro jeito de usar a tecnologia é carregar um relógio despertador que, na hora certa, começa a vibrar, semelhante aos aparelhos celulares, que são colocados debaixo do travesseiro. Isto faz parte da cultura surda.
Cena: “O cão à escuta” (Lapalu 2006, p. 53)
12
Comentário: Léo vai visitar um amigo surdo, para se divertirem com jogos, TV, e tem
um cão na casa. O telefone tocou, o cão chamou seu dono, avisando que o telefone tocou. O irmão (bebê) chora no berço, o cão avisa; a campainha toca; a panela de pressão na cozinha faz barulho; enfim, qualquer movimento o cão está atento e avisa seu dono. Primeiro lugar, nos quadrinhos o cão sinaliza perfeitamente a direção de onde os barulhos provêm, principalmente, o cão utiliza expressão facial e labial “vruuumm” imitando o barulho da panela pressão. É certamente expressão facial e corporal que faz parte da cultura surda e sistema lingüístico como língua de sinais.Segundo, como expliquei anteriormente sobre animais de estimação, há percepção
desse contexto pelos animais, a partir do contato dos pais surdos com filhos surdos, da comunicação na língua de sinais, pois aos poucos o cão percebe que é visualmente pelas mãos que há comunicação na língua de sinais e assim se relaciona com nossa cultura surda. Citação autor Oliver Sacks, (2002, p. 145):
...alguns são cães “de escuta”, outros são apenas... cães. Vejo uma moça
fazendo sinais para seu cachorro; este, obediente, deita, rola, dá a pata. O
próprio cachorro veste um pano branco com os dizeres, de cada lado:
ENTENDO A LÍNGUA DE SINAIS MELHOR DO QUE SPILMAN. (A
presidente do corpo diretivo do Gallaudet ocupou o cargo por sete anos sem
aprender praticamente nada da língua de sinais.)
4. Ouvintes aprendendo Língua de Sinais...
Cena: “Os mistérios da língua gestual” (Lapalu 2006, p. 18)
13
Comentário: O professor ensina língua de sinais, a mãe do Léo está presente (loira),
ela tem dificuldades em articular, bem como a outra colega que está com raiva, pois não consegue articular os sinais...
Este quadrinho mostra dificuldades em movimentar as mãos, na aula de língua de
sinais, situação também relatada por professores ou alunos ouvintes que dizem ter
dificuldades na articulação de configurações de mão, por vários motivos.
Algumas pessoas relatam suas dificuldades no aprendizado da Língua de Sinais,
necessitando de um tempo maior de prática e imersão na língua. Também relatam a
dificuldade de articular simultaneamente à produção dos sinais, a expressão facial, o contexto na frase, etc.
Existem profissionais que trabalham com alunos surdos que apresentam dificuldades
em se expressar na Língua de Sinais. Sá analisou alguns enunciados de professoras de surdos que saibam pouco Língua de Sinais (2005, p. 292), partindo de um pequeno texto apresentado ao grupo: Mesmo que um professor não saiba a língua de sinais, com amor e dedicação ele pode desenvolver um bom trabalho na educação dos surdos.
ENUNCIADOS DOS PROFESSORES: • “Concordo. Todo trabalho feito com amor e dedicação é bem feito.Existe aquele que compreende todos os sinais, mas não tem amor no
que faz: este educador também não conseguirá fazer um bom trabalho”
• “Concordo. Tudo vai da dedicação, do interesse e da boa vontade.”
• “Concordo, a mímica e a encenação ajudam muito o professor”
• “Concordo. Não conheço tudo sobre a linguagem dos sinais, mas eu conheço alguns sinais importantes e com esforço consegui que eles aprendessem alguns fonemas”
• “Sim, eu não tenho língua de sinais, mas com muita vontade alcancei uma atuação razoável com meus alunos.
14
Então, observando as respostas acima das professoras que afirmam ter dificuldades na
língua de sinais, elas consideram importante carinho, amor, mímica, etc para “ajudar” os alunos surdos. Visão benevolente, de entendimento da língua de sinais como recurso, desconsiderando que para os alunos surdos, o entendimento da língua de sinais e uma comunicação fluente são fundamentais, não somente mímica, carinho...
Cena: “Índice Temático” (Lapalu 2006, p. 98)
No final do livro, cada tema que saiu nos quadrinhos do livro “Léo, o puto surdo”,
tem toda a explicação do artefato cultural citado, por exemplo, TDD, Alerta vibratório, relógio despertador, Língua de Sinais, Legenda na televisão, etc.
Esse índice temático é importante para que os leitores possam ampliar conhecimentos
na cultura surda, tendo acesso a todas as informações sobre formas de atender, reconhecer ou se comunicar com os surdos. O índice temático também auxilia o leitor na identificação de alguns temas e no esclarecimento de algumas dúvidas relacionadas ao entendimento das histórias apresentadas.
Conclusão...
O livro, através de ilustrações e de diálogos bem humorados, apresenta o cotidiano de
pessoas surdas, situações embaraçosas, momentos de dificuldades de comunicação com
pessoas ouvintes, alternativas e estratégias criadas para “driblar” uma cultura sonora, enfim, narrativas que se aproximam de muitas outras histórias de surdos. Então, nesses recortes apresentados, há possibilidades de cruzamento temático com outras narrativas do povo surdo e da comunidade surda, cuja ênfase está na cultura surda, na identidade surda, e em uma minoria lingüística que usa a Língua de Sinais.
Observei que este livro é espetacular, mostrando a cultura surda, de modo bem
animado, valorizando a experiência visual e a Língua de Sinais. É interessante que o autor surdo escolheu várias cenas para mostrar um animal de estimação, um cão que sabe Língua de Sinais e que traduz muitas informações sonoras. A ilustração com expressão facial do cão saiu de modo claro, principalmente quando foi mostrado o sinal “panela de pressão” com um movimento labial imitando o som produzido pela panela.
O autor surdo Yves Lapalu, com o objetivo de ilustrar parte da cultura surda, publicou o livro “Léo, o puto surdo”, sucesso na França e em Portugal para surdos e também para 15
ouvintes. Imagino que os surdos brasileiros vão também querer ler esse livro. Através de situações engraçadas, os surdos estão nas narrativas, permitindo que façam associações e relembrem, através dos quadrinhos, aspectos que fazem parte da cultura surda. Leitura que favorece o alívio do corpo, das mãos e dos olhos.
O livro analisado não é o único livro da editora Surd`Universo, existem outros livros
que são vendidos na Europa e EUA. No Brasil, ainda não temos histórias em quadrinhos com essa ênfase e temática desenvolvida. Há alguns livros de literatura surda, escritos por autores brasileiros como Cinderela Surda, (Hessel, Rosa e Karnopp, 2003); Rapunzel Surda (Hessel, Rosa e Karnopp, 2003); Adão e Eva e Patinho Surdo, (Rosa e Karnopp, 2005); entre outros, mas ainda são raros, necessitando aumentar a publicação de livros que mostrem o talento de muitos surdos, que contem histórias e que ilustrem a arte surda.

Como se dá a aquisição de linguagem na educação de surdos?

Fonte : http://www.psicopedagogia.com.br/entrevistas/entrevista.asp?entrID=84
A resposta a esta questão depende da abordagem de educação adotada. Quando se fala em educação de surdos, há basicamente três abordagens: o oralismo; a comunicação total e o bilingüismo. Um breve passar sobre elas se faz necessário.

O oralismo tem como objetivo ensinar o surdo a falar (no nosso caso, o português). Nesta abordagem, propõe-se que a aquisição da fala deve ser iniciada o mais cedo possível, utilizando-se para isto dos instrumentos necessários, em que se inclui o aparelho auditivo; procura-se, ainda, explorar os resíduos auditivos que o surdo possui. Para essa aquisição é necessário um trabalho sistematizado, que deve ser feito por um profissional competente (o fonoaudiólogo). A aquisição da fala é um trabalho árduo para o surdo e pressupõe um trabalho contínuo e prolongado. Apesar de ainda ser usado hoje, o oralismo teve seu auge e hegemonia, de 1880 (a partir do Congresso de Milão, quando foi abolido o uso da língua de sinais) a mais ou menos 1970, permanecendo por praticamente um século como abordagem exclusiva na educação dos surdos.

A abordagem da comunicação total surgiu na década de 70, como uma alternativa ao oralismo estrito. Advoga o uso de todos os meios que possam facilitar a comunicação, desde a ‘fala sinalizada’, passando por uma série de sistemas artificiais até os sinais. Muitos dos sistemas usados por ela, tinham como objetivo auxiliar a compreensão da língua falada, razão pela qual é vista, por muitos, mais como uma extensão do oralismo do que como oposição ao mesmo. Nesta abordagem, propõe-se que todos os recursos são importantes e indispensáveis para promover a comunicação: fala; leitura labial; escrita; desenho; língua de sinais; alfabeto manual etc. Quando foi criada teve o mérito de reconhecer a língua de sinais como direito da criança surda. A crítica maior a esta abordagem se relaciona ao fato de na prática propulgar o uso simultâneo de fala e sinais, constituindo o ‘bimodalismo’ ou ‘português sinalizado’. O uso simultâneo entre as duas línguas (língua falada e português sinalizado), apesar de proposto pela comunicação total, não tem respaldo teórico. Na verdade, tal conciliação nunca foi e nem poderia ser possível, devido à natureza extremamente distinta das duas línguas em questão. Sendo assim, não demorou muito para que a comunicação total cedesse lugar ao bilingüismo.

O bilingüismo defende o uso da língua de sinais (no Brasil: Língua Brasileira de Sinais ou LIBRAS) e do Português , como duas línguas distintas, reconhecendo o surdo na sua diferença e especificidade. As duas línguas são usadas, mas não simultaneamente, como propunha a abordagem anterior. Na prática o bilingüismo se caracteriza, no Brasil, pelo domínio de LIBRAS e Português (falado e escrito) ou pelo domínio de LIBRAS e do Português escrito (grande maioria dos surdos brasileiros considerados bilíngües se incluem nesse 2o grupo).

No bilingüismo, a primeira língua (L1) dos surdos é a Língua de Sinais. A língua falada ou escrita a ser adquirida (o Português, por exemplo) é tida como 2a língua (L2). A Língua de Sinais é, ainda, considerada a língua natural dos surdos. Língua natural é aquela que os indivíduos adquirem na interação com outros, sem necessitar de muito esforço e de um trabalho sistematizado. Os surdos adquirem assim a Língua de Sinais (como os ouvintes adquirem o português oral); o mesmo não acontece quando se tenta oralizá-los.

No bilingüismo, propõe-se que o surdo adquira a Língua de Sinais desde a mais tenra idade, assim como os ouvintes adquirem a fala. Assim sendo, as criancinhas surdas passam por estágios muito semelhantes às ouvintes, ou seja: - período pré-lingüístico (como os ouvintes); estágio de um sinal (correspondente ao estágio de uma palavra); estágio das primeiras combinações; estágio das múltiplas combinações.

No bilingüismo, a surdez não é vista como uma incapacidade, mas como uma especificidade; não como uma deficiência, mas como uma diferença. Assume-se que a especificidade biológica (a surdez) faz com que o canal preferencial de apreensão do conhecimento pelo surdo seja o visual (ou melhor, viso-espacial). Este dado marca suas possibilidades (e não seus déficits, como em outras concepções). O surdo se assume como tal, se respeita e quer ser respeitado. Faz da sua diferença a sua força: ela deve ser o ponto de partida para a sua educação, seu ensino (uso de recursos viso-espaciais), como foi para a construção de sua língua (uma língua de natureza viso-espacial). É neste sentido que, nesta abordagem, não se fala em deficiente auditivo (o termo traz a conotação de deficiência, incapacidade), mas em surdez. Assumir a Língua de Sinais como a sua língua é para o surdo uma questão que ultrapassa os limites lingüísticos, tem muito a ver com sua própria identidade, uma vez que a língua é atividade constitutiva do sujeito (com ela construímos nosso pensamento; com ela criamos, organizamos e informamos as nossas experiências).

Libras como primeira língua dos deficientes auditivos

Fonte : Rede SACI
Data : 20/05/2003

Com o aprendizado de Libras, o desenvolvimento cognitivo dos surdos seria equivalente ao dos ouvintes
Comentário SACI: A «b=Rede SACI» abre espaço para a exposição de idéias e posturas. Quanto às modalidades de comunicação para pessoas com deficiência auditiva, existe a Língua Brasileira de Sinais - Libras e o Oralismo, além daqueles que defendem o Bilingüismo (Libras e Oralismo) e a Comunicação Total, isto é, a adoção da modalidade que mais se adequar a necessidade de cada pessoa.

Myrna Salerno*

Primeiro eu quero esclarecer melhor a definição da filosofia educacional para o surdo, o Bilingüismo. Existem dois tipos: o social e o individual.

O social diz respeito à necessidade de os surdos aprenderem a língua do país onde vivem. Exemplo: A pessoa ouvinte que mora nos EUA e fala inglês porque é a língua do país. O Surdo que vive no Brasil e fala o português porque é a língua do país. Certo? Devido às famílias ouvintes 95% são filhos de pais ouvintes e 5% são filhos de pais Surdos.

O individual está relacionado ao livre arbítrio para aprender qualquer língua. Exemplo: A pessoa ouvinte deseja aprender a língua francesa, japonesa. A Libras também não é obrigatória. O Surdo pode aprender a língua portuguesa se quiser, não é obrigatório.

Quanto ao aprendizado da primeira língua e da segunda pelos surdos, as pessoas confundem muito porque acham que os surdos deveriam aprender primeiro a língua do país, ou seja, a língua portuguesa, isso que está acontecendo até hoje. No Brasil, a primeira língua para os Surdos é a Língua Brasileira de Sinais - Libras e a segunda é o português, ou seja, o Bilingüismo.

Há especialistas e oralizados que defendem o contrário, isto é, que a primeira língua seja o português e a segunda a LIBRAS. Vários surdos foram treinados para falar o português desde pequenos e devido à proibição do uso da Libras não aprenderam. Assim, os surdos dominam parcialmente o português, isto é, falam com muita dificuldade, são dificilmente compreendidos pelos ouvintes e escrevem como se fossem "estrangeiros".

Perguntaria se os surdos possuem uma língua materna? A resposta seria não, portanto, os surdos aprenderam com família e escolas de outra filosofias educacionais tais como, o Oralismo e a Comunicação Total, que ensinavam aos surdos a se oralizarem, a aprenderem a língua portuguesa, ou seja, a língua materna social (da sociedade).

Essa tarefa não é fácil e às vezes é muito lenta. A ciança surda deveria ser colocada diariamente em contato com um adulto surdo fluente em Libras. Eu acredito que é a língua materna em lingüística, pois as crianças surdas, filhas de pais surdos têm um melhor desempenho acadêmico e psicológico do que as crianças surdas filhas de pais ouvintes, por isso, devemos entender que as crianças surdas filhas de pais ouvintes deverão ter sempre contato com os adultos surdos, aprendendo sobre as experiências de vida de um adulto, adquirindo a linguagem espontânea.

"Para atingir uma boa educação para as crianças surdas, os pais ouvintes precisarão de muita ajuda de um adulto surdo. Aprendendo sobre experiência de vida de um adulto, esses pais podem desenvolver uma imagem positiva de si próprios que refletirá no futuro de seus filhos."( Jim Kylle, 1994).

Os adultos surdos representam as regras e os modelos lingüísticos da Língua de Sinais, uma língua natural e própria dos surdos. Eles funcionam como os falantes da língua materna em Lingüística, dividindo com a criança os seus métodos de comunicação e suas identidades culturais.

A criança surda iria aprendendo o português gradativamente, sendo que a partir dos três anos seria dada grande ênfase à escrita. Mas devemos lembrar que o canal natural para o ensino / aprendizagem do surdo é o visual.

Acredito que o bom desempenho em Libras não irá facilitar a pronúncia das palavras e orações da língua portuguesa, mas o seu desenvolvimento cognitivo é equivalente ao do ouvinte.

Todas as disciplinas (história, geografia, etc..) devem ser ensinadas em Libras, sendo esta a língua materna dos surdos. O professor surdo ensinará muito mais conteúdo de cada uma das disciplinas do que se tentasse ministrar suas aulas em português. Para isso, é necessário que o professor seja fluente em Libras.


Conclusão

Como no Brasil a formação acadêmica dos surdos não é o forte, há surdos que são formados nas faculdades, mas não são concursados nas universidades, ou seja, não têm ainda a formação de Mestre ou Doutor. São poucos... a falta de professores fluentes em Libras em todas as disciplinas nas faculdades e também a falta de intérpretes, da sua formação nas universidades, etc. Isso impede os surdos de continuarem os seus estudos e de ensinarem no futuro.

A política do Brasil é muito complexa, pois a educação no país e encaminhada por meio do Ministério da Educação e da Cultura, que repassa para as universidades e depois para as escolas federais, estaduais e municipais. Somente os professores acadêmicos formados com mestrado e ou doutorado poderão ser aceitos. Sem formação, eles não aceitam.

Nós surdos estamos sempre com os professores lingüistas, principalmente os que defendem o Bilingüismo e a Identidade Surda. Por isso, devemos agradecer aquelas pessoas, ou seja, a professora Lucinda Ferreira Brito, que foi a pioneira e defendia o Bilingüismo aqui no Brasil, na época das filosofias educacionais nas escolas de Oralismo e Comunicação Total. Depois a Tanya Amara Felipe e os demais professores e educadores.

Nós precisamos continuar lutando e pesquisando a Libras através de filmagens, com os materiais didáticos já estruturados. A pesquisa do grupo dos Surdos no Rio de Janeiro e outros estados foram ampliando e tendo muitos instrutores e multiplicadores no Brasil, com os materiais didáticos prontos para o país. (Libras em contexto, CDs, fitas de vídeo, etc...).


Myrna Salerno é professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e também participa do Grupo de Pesquisa e Cultura Surda da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos - Feneis. O e-mail para contato é myro4@yahoo.com.br.